Por: Carina Barros Lins / Edição: Julia Oliveira e Willian Oliveira

Alagamentos, enchentes, deslizamentos de barreiras, fortes inundações, chuvas, galo da madrugada e a cidade do Recife ocupando a 16ª posição entre as cidades mais vulneráveis à mudança do clima no mundo

Nos últimos anos, os eventos climáticos intensos ocasionados pela interferência humana no meio ambiente, têm revelado um cenário de grande vulnerabilidade social nas regiões brasileiras. Tragédias como as que assistimos nas cheias históricas no Rio Grande do Sul, em 2024, com mais de 170 mortes, em Petrópolis na Região Serrana do Rio de Janeiro, em 2022, com 235 mortes e ainda no mesmo ano em Pernambuco, na Região Metropolitana do Recife, com 134 mortes por enchentes e deslizamentos de terras, apontam para um cenário do qual  o Brasil ainda não está preparado para lidar. Com os efeitos das mudanças climáticas, podemos acabar repetindo um velho problema: a pobreza urbana.

Pobreza essa que bate na porta das populações vulnerabilizadas quando acontecem tragédias socioambientais de grande impacto. Na Região Metropolitana do Recife, em 2022, o desastre aconteceu na capital, que além de ter o galo da madrugada considerado um símbolo do carnaval e o Frevo, segundo a Unesco, visto como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, a RMR também ocupa a 16ª posição entre as cidades mais vulneráveis à mudança do clima no mundo.

Conforme as informações do relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), instituto pelo qual foi realizada a pesquisa, essa posição mostra que é necessário correr contra o tempo para prevenir que outras tragédias não continuem acontecendo. Apesar de dois anos terem se passado, a tragédia de 2022 evidenciou problemas históricos já enraizados no estado de Pernambuco: a ausência de moradia digna, desigualdades sociais e o racismo ambiental. 

Foto: Eduarda Matias

A VENEZA BRASILEIRA E O RACISMO AMBIENTAL

Compreender a composição geográfica da cidade do Recife mais conhecida como a Veneza Brasileira, por ser atravessada por pontes e cruzada pelos rios Capibaribe, Beberibe e Tejipió é entender que a cidade é composta por uma área territorial de 67,43% de morros, 23,26% de planícies e 5,58% de Zonas Especiais de Preservação Ambiental. Além disso, a Região Metropolitana está a quatro metros acima do mar.

Quando o inverno, ou qualquer outro período intenso de chuvas chegam, mesmo a cidade tendo um Plano de Análise de Riscos e Vulnerabilidades Climáticas e Estratégia de Adaptação, lançado na Conferência Brasileira de Mudança do Clima em 2019, a população fica em estado de alerta.

A tragédia de 2022, foi um dos eventos que aconteceu em áreas afetadas por falta de infraestrutura urbana deixou muita gente desalojada, além de revelar o racismo ambiental. Racismo esse que empurra as pessoas negras e pobres a viverem nos morros e em locais de aterros sanitários.

Segundo, Joice Paixão, Cientista Social e Coordenadora da ONG Gris-Espaço Solidário, localizado no bairro da Várzea, na Zona Oeste do Recife, o racismo ambiental, se configura como “conjunto de práticas de estratégias e ferramentas baseadas no racismo e na desigualdade social, fazendo com que as pessoas sofram infinitamente mais do que outras aos efeitos das mudanças climáticas”, afirmou.

“Ninguém mora em área de risco por que quer, um belo dia a pessoa acordou e estava muito tediosa e ela resolveu ter um pouco de emoção indo morar na beira de um barranco e na beira de um rio, não é sobre isso”, relata.
Foto: Luiza Mobille

Mas, para compreender o conceito do racismo ambiental, é preciso entender que o termo não surgiu agora no século XXI, a discussão vem desde a década de 80 nos Estados Unidos. O estudo realizado pelo sociólogo Robert Bullard, por meio de uma experiência concreta em Affton, no Condado da Carolina do Norte, identificou que os aterros sanitários de depósitos de lixos tóxicos estavam localizados em áreas mais pobres.

Somente após essa análise que o químico ativista Benjamin Chavis, que esteve a frente dos movimentos dos direitos civis dos negros, criou a expressão “racismo ambiental”. 

O racismo ambiental pode ser visto de maneira mais forte quando acontecem os eventos climáticos extremos. “Ele não existiu agora, de repente é algo com que as pessoas já vêm sofrendo com isso a anos. A Várzea pra mim é um grande exemplo do que é racismo ambiental, em 2022, a mesma chuva que caiu aqui na Vila Arraes, caiu na Cidade Universitária, que é a 1 km e 100 metros daqui, mas lá as pessoas não perderam casas e móveis. 

As pessoas tiveram pontos de alagamentos, porque realmente foi um grande volume de água. Agora é que as consequências das mudanças climáticas começaram a chegar em um outro público, que o debate vem à tona”, diz Joice Paixão. 

Com o cenário desigual, o Gris também atuou nas comunidades de Padre Henrique, Sete Mocambos, Beira Rio, Malvinas, Império, Rua da Merda, Loteamento Novo da Caxangá e na comunidade Nova Morada, em que se torna incontáveis os números de pessoas que foram prejudicadas pelas fortes chuvas.

Para Joice, a necropolítica é um dos basilares que corroboram para esses acontecimentos. “Não dá para falar sobre segurança alimentar se não estamos falando de racismo ambiental e estrutural. Porque existe isso, essa necropolítica não é só política com a violência do estado, violência da polícia, não é só isso, é a política de morte, que decide quem vai viver e quem vai morrer”, pontua.  

NÓS POR NÓS: MARCAS E FERIDAS DOS DESASTRES DE 2022

Os desastres socioambientais deixam marcas e feridas que não cicatrizam com tanta facilidade. A angústia, a ansiedade, o desespero e o medo da chuva, são sentimentos que ficaram na memória de quem viu casas sendo destruídas em poucos segundos. 

A auxiliar de cozinha, Maria Helena da Silva, de 50 anos, moradora do bairro da Várzea, próximo da Vila Arraes, em Recife, viu a casa do sobrinho desabar por uma forte enxurrada que aconteceu nos dias 24 até o dia 28 de maio, de 2022. “Quando chove é uma sensação de medo, até porque nessa época, eu estava começando a ficar com ansiedade e não sabia, daí a noite começou com uma chuva intensa e a gente sem perceber, quando o dia amanheceu, vimos que a água já estava começando a passar depois da ponte. Foi daí que começamos a ajudar as pessoas que moram na Vila Arraes”, contou. 

“Até hoje quando chove que eu escuto o barulho da chuva, eu começo a orar. Senhor protege essas pessoas que estão na barreira e as que estão embaixo também”, conta.
Foto: Carina Barros

Foram dias intensos em que as pessoas não conseguiram dormir facilmente. Para ela, o trabalho voluntário no Gris – espaço solidário, serviu de acolhimento para as pessoas que perderam tudo na tragédia. “Cozinhamos muito, no trabalho voluntário cortamos verduras, fizemos mais de  5 mil e 800 quentinhas, tinha muita gente passando fome por que tinham perdido tudo e de imediato, não tivemos nenhuma ajuda dos governos durante a tragédia”, relatou.

Já para a irmã de Maria Helena, a Raquel Sandra, confessa que o desastre de 2022 desencadeou mais uma vez problemas históricos de moradia e evidenciou o racismo ambiental. “Em pleno século XXI vivemos numa condição precária, de moradia e de saneamento básico, para um bairro que é tão nobre, o povo fala que a Várzea é valorizada, mais é valorizada para as pessoas que moram perto da Universidade Federal de Pernambuco. Acontece que o mercado imobiliário está crescendo e sufocando a gente e estamos aqui esquecidos pelo poder público (….)”, afirmou. 

“Todas às vezes que começa a chover a gente fica realmente com o coração apertado, porque não é fácil”, diz. Foto: Carina Barros

A QUEM PERTENCE O DIREITO À MORADIA DIGNA? 

Assegurado pela Constituição Federal de 1988, o direito à moradia no Art. 23. é  de responsabilidade da União, Estados e Municípios, a eles cabe a “promoção e implementação de programas para construções de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”. 

Mas, na prática, é diferente. A norma Jurídica entra em desacordo ao se deparar com os avanços do setor imobiliário, próximo às margens de áreas de Proteção Ambiental. De acordo com a Agência Estadual de Meio Ambiente CPRH, do estado de Pernambuco, o rio Capibaribe é uma das áreas ameaçadas pela expansão imobiliária e um dos objetivos das Áreas de Preservação Permanente (APPs) é manter esses ambientes seguros, evitando a degradação ambiental dos rios, a destruição da fauna, flora e dos ecossistemas.

As APPs são uma das categorias de vegetação protegidas pela lei de proteção da vegetação nativa do Brasil, o Código Florestal (lei nº 12.651/2012). O mecanismo garante, não só a defesa das nossas florestas e biomas, como também a proteção das populações que dependem deles.

A ausência de cuidados, intensifica a desigualdade social e abre brecha para o avanço imobiliário e coloco em risco a implementação do Código Florestal. Segundo, a arquiteta urbanista e doutoranda pesquisadora do Observatório das Metrópoles (Núcleo Recife) Patrícia Tondelo, o avanço imobiliário reflete na forma como acontecem os impactos socioambientais. 

“É muito fácil você morar num prédio do lado de uma comunidade e quando inunda, fica tudo transbordando ali embaixo e as pessoas que moram lá, tem as suas casas invadidas pela água. E essa questão do avanço imobiliário tem um ponto de que para você construir um empreendimento, você precisa aterrar aquele espaço. E esses aterramentos, você direciona o local que servia para bolsão de água, para outros lugares que seria o espaço do lado, onde muitas vezes é o espaço do vizinho que mora numa comunidade”, afirmou. 

Esse processo de urbanização, desenfreada, acontece em várias metrópoles do Brasil e do mundo, em que áreas periféricas, apesar de dividirem o espaço territorial com os prédios luxuosos, são as que mais sofrem com o saneamento básico, falta da água, alagamentos e situações de constantes riscos de enchentes e deslizamentos de terras. A grande questão é: Até quando?  

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